quinta-feira, 7 de abril de 2022

(Artigo Académico) Yoga nos Purāṇa-s

A palavra Purāṇa genericamente significa “antigo”, remetendo à ideia de narrativa pristina. Os Purāṇa-s propriamente ditos compõem enciclopédias populares redigidas num estilo algo semelhante ao do Mahābhārata, mas com um maior grau de estruturação. De genealogias de famílias reais à genealogia do Universo em si, numa tónica geral os conteúdos purāṇicos narram a origem das coisas, ainda assim, são variadíssimos quanto às temáticas. O valor enciclopédico dos Purāṇa-s não é para ser tomado à letra, apesar de algumas correntes Hindus ainda insistirem nessa ideia, dado que são uma mistura de mito e história, tradição e inovação. Não espanta, por isso, que em alguns círculos sejam aceites como o “Quinto Veda” (algo que sucede também com outras escrituras, por exemplo os Tantra-s, dependendo da ambiência sectária), denotando o elevado apreço que outrora tiveram.

A base contextual e narrativa dos Purāṇa-s remonta ao Período Vaidika, quando eram memorizados e oralmente transmitidos, muitas vezes em performances dramatizadas (1). A passagem ao registo escrito ocorre posteriormente, implicando consideráveis alterações ao seu teor original: de facto, a saber-se, nenhuma das composições percursoras dos Purāṇa-s sobreviveram; já para não falar no mito do Purāṇa Original, alegadamente prévio aos próprios Veda-s. Com efeito, crê-se que nos seus primórdios fossem transmitidos oralmente por contadores de estórias, os Sūta-s, à margem dos círculos bramânicos ortodoxos. Ou seja, inicialmente os Purāṇa-s eram para o público geral o que os Veda-s e os Brāhmaṇa-s eram para as famílias sacerdotais védicas. Porém, no decurso dos séculos, acabaram por ser apropriados pelas elites e famílias brâmanes, gerando-se grandes folclore e pompa ao redor da sua transmissão em ambientes e festividades de corte – os Sūta-s que inicialmente ocorriam entre o vulgo, passaram a ter estatuto e papéis proeminentes nas cortes, especializando-se na narração e recitação das narrativas purāṇica-s aos kṣatriya-s. Diz-se que este processo foi profundamente influente na construção dos Purāṇa-s na medida em que muitas vezes os conteúdos seriam “ajustados” de modo a agradar às famílias nobres que patrocinavam a sua recitação. Daqui resulta também que a mitologia dos Purāṇa-s dependa, de algum modo, da Védica. Contudo, o estilo acabou por seguir um curso evolutivo distinto e, hoje em dia, os Hindus tradicionais pouco sabem das lendas védicas, tendo presente no seu imaginário colectivo o riquíssimo universo criativo das lendas Purāṇicas.

Dada a variabilidade de textos e versões individuais, pode-se dizer que existem Purāṇa-s com valor canónico e outros apócrifos, fora o que não se sabe, na medida em que é um assunto que ainda está a ser desvelado e sujeito a investigação. Assim, com considerável unanimidade, fala-se em dois grupos de Purāṇa-s: Māha (“Grandes”) e Upa (“Menores”). Os dezoito Māha Purāṇa-s, cada um dos quais erigido a partir de milhares de versos (śloka-s), são: Brahma (também denominado Ādi, “Original”), Padma, Viṣṇu, Vāyu, Bhāgavata, Nārada, Mārkaṇḍeya, Agni, Brahmavaivarta, Liṅga, Varāha, Skanda, Vāmana, Kūrma, Matsya, Garuḍa e Brahmāṇḍa Purāṇa. Os Upa Purāṇa-s, normalmente, são também reunidos em grupos de 18, no entanto, de um modo menos consensual, sujeitos a diferentes interpretações sectárias, e resultando em várias compilações distintas. Aqui ainda acresce o facto de ocorrerem composições locais (sânscritas e vernaculares) que envergam a designação de Purāṇa, frequentemente motivo de discussão relativamente ao estatuto que lhes deve ser reconhecido. Um dos Purāṇa-s secundários mais significantes é o Devī Bhāgavata Purāṇa, que é dedicado à adoração da Deusa. Globalmente, uma coisa parece certa: todos procuram instruir os devotos das várias tradições religiosas, e foram extremamente influentes na educação das massas – de facto, crê-se que os Purāṇa-s estiveram para o povo como os Épicos, Mahābhārata e Rāmāyaṇa, estiveram para a aristocracia.

Regressando à temática dominante dos Purāṇa-s, é comum aceitar-se que se organizam num eixo de cinco tópicos característicos, o pañcalakṣaṇa (“aquilo que tem cinco características”). Esta ideia foi “celebrizada” por H. H. Wilson, em 1840, ao prefaciar a sua tradução do Viṣṇu Purāṇa, a primeira para o inglês, afirmando que os conteúdos purāṇicos seguiam a seguinte linha: (1) Reconto da Criação Primária ou Cosmogonia (sarga); (2) Reconto cronológico da Criação Secundária (pratisarga) ou Renovação dos Mundos, após um evento de destruição massiva no final do ciclo cósmico (kalpa); (3) Exposição da Genealogia (Vaṃśa) de deidades e sábios; (4) Reconto mitológico das Eras Cósmicas, o Manvatara, enquanto ciclos fundamentais da existência, cada um com o seu próprio Manu (figura que pode ser paralelizada ao Adão Hebraico), originador da Humanidade; (5) Exposição da Genealogia das dinastias reais (Vaṃśānucarita), num enquadramento histórico. Contudo, na prática, verifica-se que poucos Purāṇa-s se alinham por este ideal tradicional das “cinco características” ou pañcalakṣaṇa, sendo que a maioria versa uma miríade de temas numa estrutura heterogénea.

Dentro dessa variabilidade temática, o Yoga, por sua vez configurado de diferentes modos, é um dos tópicos que recorre em vários Purāṇa-s. Dos princípios Filosóficos aos aspectos técnicos, o Yoga é abordado, com maior ou menor relevo em vários Purāṇa-s (2). O Brahma Purāṇa, por exemplo, define o Yoga como “a união da mente e dos sentidos com o Self”, descrevendo igualmente aspectos técnicos da prática. O Padma Purāṇa recomenda o Kriyāyogasāra, uma espécie de Yoga ritual, em detrimento da meditação (dhyāna), visão oposta à do Viṣṇu Purāṇa que defende o caminho da meditação, concretamente, adoptar como foco único de atenção e contemplação Viṣṇu, que, por si só, concede a eterna libertação. O Mārkaṇḍeya Purāṇa aponta a importância do corpo na prática de Yoga, referindo-se à ausência de medo como medida de sucesso. O Kūrma Purāṇa emula a abordagem da Bhagavadgītā e o Vāyu Purāṇa propõe o Maheśvara Yoga (“Yoga do Grande [Mahā] Senhor [Īśvara]”), para se atingir a Libertação última (apavarga), veiculado por cinco elementos (dharma) ou auxiliares: controlo da respiração (prāṇāyāma), meditação (dhyāna), rectracção sensorial (pratyāhāra), concentração (dhāranā) e recolecção ou rememorização sistemática (smarama). Liṅga, Agni, Garuḍa e Bhāgavata Purāṇa-s introduzem conceitos de Yoga enquadrados num Caminho Óctuplo, paralelo ao apresentado por Patañjali no Yogasūtra-s, com diferenças ao nível da base metafísica e, em alguns, numa ênfase dada à prática devocional e ritual. O Śiva Purāṇa aborda o Yoga com detalhe, distinguido entre Mantra, Sparśa, Bhāva, Abhāva e Mahā Yoga. O vaiṣṇava Devī Bhāgavata Purāṇa (Śrīmad Bhāgavata Mahā Purāṇa) foca-se na laudação ao Sagrado Feminino, lembrando um tantra.

Em suma, os Purāṇa-s contém abundantes referências ao Yoga. Em todo o caso, apesar das inúmeras traduções para o inglês, é ainda necessário um estudo mais profundo desta questão particular da Literatura Purāṇica.



Joel Machado



Notas
(1) Tal como defende, por exemplo, Matchett, Freda (2003).
(2) Pare um desenvolvimento mais detalhado desta ideia, ver Feuerstein (1998).



Bibliografia

Matchett, Freda (2003) The Purāṇas in Flood, Gavin, ed. (2003). The Blackwell Companion to Hinduism. Malden, MA: Wiley-Blackwell.

Feuerstein (1998) The Yoga Tradition. Phoenix, Arizona. Hohm Press.
 
 
(Fragmento do skandapurāṇa | Foto/Créditos: Domínio Popular)

 
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