Debaixo das
folhagens, flores, frutos, ramos, raízes, caules e troncos da
densa flora que cobre a geografia sagrada (Bharat avarsh)
do subcontinente indiano, um gigantesco panteão de santos , elementais,
deuses e deusas se abriga. Não à-toa, as plantas, de acordo com
os shastras (escrituras sagradas) transformam
a energia que transita entre o cosmo e o planeta, que se dispersaria
aleatoriamente, no combustível da própria existência. Segundo o Atharva Veda os vegetais capturam o alento
vivificador (Prana) esparso na atmosfera e, como fios condutores, espalham a
vida na natureza (prakriti).
“1-Nos curvamos ao
Prana , ao qual o mundo é submisso, que é o senhor de tudo, e onde tudo se
sustenta.
2-Nos curvamos, ò
Prana, ao rugido de teu vento, nos curvamos, ò Prana ao teu trovão, nos
curvamos, ò Prana aos teus raios, nos curvamos, ò Prana a tua chuva. Quando o
Prana faz seu chamado ás plantas com seu trovão, elas são fecundadas, concebem,
e produzem abundancia.
3-Quando a estação
chega e o Prana convoca ruidosamente as plantas, todas as coisas sobre a
terra se rejubilam.
4-Quando o Prana
rega a grande terra com chuva, os animais celebram: ” a força, de fato, agora
vamos obter. “
5-Quando são
regadas pelo prana , as plantas em conjunto proclamam:” Você de fato
prolongou nossa vida e nos fez fragrantes”
16- As plantas
sagradas (atharvana), as mágicas (angirasa), as divinas e aquelas
produzidas pelo homem, se desenvolvem, quando tu Prana, acelera seu
movimento.”
Nos Upanishades,
coletânea de textos metafísicos, o Prana é a essência e força motriz da
vida consciente (Jiva). “Pelo prana como que por um cordão, este mundo, o outro
mundo, e todos os seres são mantidos juntos” ( Brhadaranyaka Upanishad ) ou, como
explica o rishi Pippalada, a um discípulo “ O Prana nasce da Alma do Universo (Atman) mas como um homem e sua
sombra, o Atman e o prana são inseparáveis. Ele entra no corpo pela ação da
mente (manas)”( Prasna Upanishad
).
Além do
alento (Prana) que sustenta a organicidade da existência, as plantas
contem a semente da consciência (cit). Na visão
das escrituras, antes de atingir o plano humano e estar apto a transcender ao
seu nível mais elevado através do Yoga, o ser consciente (Jiva) passa por 84 milhões de estágios (nascimentos),
na forma de vegetais, animais aquáticos, insetos, passáros e
animais superiores. Dotado da capacidade de capturar a força que a
natureza dispersa ao acaso na forma de raios, ventos, trovoadas e
chuvas, através das folhas, e transformar o mundo mineral inerte em
vida com suas raízes, o reino vegetal ao aglutinar a natureza expansiva da
energia (Shakti) à contenção e limites impostos pelos elementos
grosseiros da matéria (mahabhutas), molda
as primeiras estruturas da consciência.
A flora
exposta a toda a sorte de percepções quando interage com diversos solos,
topografias e climas, cria a diversidade inicial dos padrões
mentais (cit). O sábio( rishi) Bhrigu, no épico Mahabharata, esclarece Bharadhvaja que
as plantas são detentoras de todos os sentidos: podem sentir calor, ouvir
sons, perceber odores , degustar o sabor da agua que absorvem,
e mesmo experimentar a visão quando buscam a luz.
Com prana e cit (consciencia
) sendo os dois pilares do caminho (sadhana) do yoga, a
flora estaria fatalmente emaranhada na via da libertação (moksha) . Assim, na primeira obra que compila o
yoga como sistema, os Aforismos de Patanjali , moksha é
alcançado pelo controle da consciência (cit) através
do prana disciplinado; e no primeiro verso de
do quarto e último capitulo que trata sobre a transcendência (Kaivalya), Patanjali faz referencia ao uso
de ervas :
“Os siddhis
(poderes) podem ser alcançados por nascimento, por ervas medicinais (auşadhi), por mantras,
pelo Tapas ou por samadhi”
O rishi (sábio) Vyasa ao comentar esta
passagem (Yoga Bhasya), esclarece que ervas podem ser usadas para
a transcendência. Mas faz uma advertência. O conhecimento das ervas é
uma ciência de domínio dos titãs (asuras), seres
míticos inimigos dos deuses (devas), que
muitas vezes põem seus conhecimentos ao alcance dos homens, dando a eles
independência da intervenção divina. E o poder humano, desregrado da vigilância
divinal, pode muitas vezes desandar em impulsos mundanos.
“Ele descreve a
perfeição alcançada com ervas. Um ser humano que por uma razão ou outra alcança
a mansão dos asuras, e quando se utiliza dos elixires trazidos a ele por
donzelas e asuras, alcança a ausência da idade e a imortalidade e outras
perfeições (siddhis). Ou (esta
perfeição pode ser alcançada) pelo uso de um elixir da vida neste mundo. Como
por exemplo o sábio Mandavya, que morou nos Vindhyas e fez uso dessas poções.”(Yoga
Bhasya, Vyasa)
Comentários
posteriores como o do século lX de Vācaspati Miśra , compartilham esta visão,
e intercambia o termo ervas mestras (ausadhi) com
alquimia (rasayana) e declara que um um homem pode ser
iniciado ”ao atrair donzelas asuras”. No Bhagavatta Purana o
termo alquimia ( rãsa /rasayana) é utilizado como o
das ervas medicinais encontradas “na morada dos Asuras”.
Elemento
central no ayurveda (medicina védica)
na construção da saúde e bem-estar, o vínculo das ervas
com o mundo dos Asuras, seres muitas
vezes mais dominados por impulsos do que por discernimento, levantou a
suspeita de que o uso deste recurso seria um percurso
perigoso no yoga , principalmente na ótica do bramanismo ortodoxo. E até para
doutrinas que questionam a autoridade dos Vedas como o jaínismo e budismo
theravada, a cautela deve ser observada. O sábio jainsta
Hemchandra chega a colocar o yoga como uma via para prescindir do uso de ervas,
mantras e de ferramentas próprias ao tantra.
“Yoga (ou as três
jóias do Jainismo) é (como) um machado afiado para o emaranhado das trepadeiras
de todas as calamidades. È uma forma sobrenatural para se alcançar a felicidade
e libertação sem (o uso ) de ervas medicinais (mūla-estar
enraizado, de plantas e árvores), encantamentos (mantras) ou (ensinamentos)
tântricos (tantra).“ (Yogasastra Hemchandra 1.5)
Paradoxalmente,
na contra-mão, a
tradição ortodoxa encrava na raíz da transcendência uma planta .
Trata-se do soma, planta
da qual pouco se sabe, elemento chave do ritual védico, o mais
poderoso instrumento das revelações, louvado
em todo Sama Veda e em todos os versos do nono livro do Rg veda (114 no total):
“O soma é um deus; ele cura
as mais agudas
doenças que afligem o homem
ele cura os
enfermos, alegra os que sofrem,
estimula os fracos,
afasta os temores;
Aos frágeis ele
incandesce com fogos marciais,
A alma da terra aos
céus ele eleva
São tão grandes e
assobrosos seus dons,
O homem sente o
deus em suas veias
E gritam em toadas
altas e exultantes
Nós sorvemos o
brilho do soma
E nos
tornamos imortais
Nós entramos na luz
E conhecemos todos
os deuses
Que mortal agora
pode nos ferir
Ou inimigo
ainda nos humilhar?
Através de vós, sem
temores, Deus imortal
Nós voamos alto.”
(Rg Veda)
A identidade
vegetal do Soma é no entanto desconhecida. Em seu tratado de
medicina Charaka descreve: “a rainha das ervas conhecida
como Soma, tem quinze nós no estame” lançando a suspeita sobre
a Efedra (Asclepias acida). Outros conjeturam que os seis lados
côncavos das abóbodas dos templos de Ellora revelam que a Amla (Emblica officinalis) é o soma. Indiferentes à
sua classificação botânica, os textos (shastras) indicam
que juntamente com Indra o deus da chuva e rei dos devas (deuses), de Agni (deus do fogo), o
deus/planta Soma formava a trindade central do culto védico, sendo disputado
por devas e asuras.
Se o papel
da flora no caminho da libertação e transcendência teve sua importância
podada pela casta sacerdotal , nas camadas populares, onde as tradições
anímicas e femininas tem raízes, ela manteve sua preponderância, e nas
tramas do pensamento tântrico floresceu em sacralidade, associada
incialmente aos rituais e cultos às dríadas (yakshinis),
elementais femininos regentes de inúmeras espécies botânicas. E foi,
principalmente através das dríadas (yakshinis), ninfas
moradoras das árvores, que os vegetais brotaram em vários caminhos do
yoga. Manuscritos medievais se referem as yakshinis como um caminho de aprimoramento
espiritual (yakşinī-sadhana ), através de poções capazes
de um magnetismo tão poderoso que atraí a própria deusa (Bhairavi) no auxilio da transcendência do
aspirante (sadhaka). Estas yakshinis são
denominadas yoginis, e gradualmente
muitas viram shaktis (matrizes de potencia) e mesmo devis (deusas).
Crenças
populares indianas vêm as plantas como intercessoras entre os astros celestes e
os tecidos corporais. A cevada por exemplo media a relação do sol com os
ossos, enquanto o grão de bico viabiliza a interação de Júpiter com a
gordura. Assim, transmutadas em tecidos corporais (dhatus) as yoginis estão presentes nos no sistema de chakras (vórtices energéticos que transcrevem o plano
sutil para o mundo tangível ). Na obra sobre chakras mais popular no ocidente, o Sat-chakra-Nirupana, assentada
no muladhara, a yoguini Shakini controla os ossos; no svadhisthana Kakini, domina a gordura; no manipura Lakini rege os músculos; no anahata Rakini, o dirige sangue; no vishuddha Dakini administra o plasma;
no ajna Hakini governa os nervos; no sahashara Yakini gere os tecidos
reprodutivos.
Entre os
Nathas, ascetas que sistematizaram e propagaram o hatha yoga, os
vegetais são reverenciadas por dois de seus principais patronos. O
lendário Matsyendra que traz para a humanidade o conhecimento do Hatha
Yoga ao entreouvir as explanações que o deus Shiva dá à sua consorte
Parvatee sobre este caminho, é um adorador das sessenta e quatro yoginis
/yakshinis /plantas divinas (divyāusadhis) . No
seu sistema de oito chakras com oito
pétalas, cada pétala é regida por uma divyāusadhis/yogini , e
muitas destas plantas divinas são mencionadas em sua obra Matsyendra Samhita. Gorakhnath, seu discípulo, e
principal difusor do hatha yoga, expõe como as divyāusadhis
(plantas divinas), nascem nos
locais onde Shiva se une à sua consorte (shakti) e se
transformam mediante processos alquímicos nas yoginis (Goraksha Samhita Bhūtiprakarana).
Quase toda
flora do subcontinente indiano tem um patrono divino, ou santo. Vishnu
está associado à figueira e o basílico , enquanto Shiva está
ligado à Bilva (Aegle marmelos )
e ao Rudraksha (Elaeocarpus Ganitrus Roxb). Via de regra estes vegetais são apenas os
indicadores botânicos da presença dos respectivos regentes, porém
produtos que vão das flores, folhas, cascas, sementes se integram
com frequência ao próprio culto à divindade. No plano mítico, Shiva
recorre aos efeitos ansiolíticos de uma planta para suportar a perda da
esposa Sati, enquanto Vishnu vai além e contraí matrimônio com Tulsi, a
alfavaca (Ocimumum sanctum).
A relação
entre o sagrado e o botânico é ainda mais frutífera entre as
deusas e entidades femininas. Na versão Shakta (culto às devis-deusas) do hinduísmo, as deusas são identificadas
pelas árvores em flor. A jaqueira representa a deusa Shashti; a palmeira,
Badhrakali; a bananeira ou a cadamba , Kali; , o tamarindo , Kubjika e Laxmi
está no lótus. A sombra das árvores são consideradas sagradas, e
debaixo delas ocorrem processos mediúnicos. A anatomia de árvores e plantas ,
suas emissões, correspondem ao corpo e humores da
mulher e da deusa. As flores são a vulva da deusa com o poder de engendrar,
multiplicar, vivificar, materializar. Plantas enredam a trama
do plano divino ao humano. Revelam os mecanismos e os processos que controlam o
mundo da matéria, e concedem um conhecimento velado às percepções corriqueiras.
É através de árvores, trepadeiras, raízes, e parreiras que a
deusa Kubjikā (Nepal) transmite seus ensinamentos.
A
popularidade de yakshinis, yoginis, shaktis e deusas levaram à
inevitável associação da flora à feminilidade. E não só a ligação
de yoginis/devis orientais com flores e frutos,
como de Eva com a maçã no ocidente, apontam as plantas na rota que vai da
tentação à perdição. Em tradições predominantemente masculinas, fatalmente estes
cultos acabam sob suspeição: os vegetais, fortemente associados à
materialidade, não podem ser um caminho para a libertação (moksha).
“Krishna
disse: Afirma-se que existe uma figueira-da-bengala (peepal) imperecível,
cujas raízes ficam para cima e os galhos para baixo e cujas folhas são os hinos
védicos. Quem conhece esta árvore é um conhecedor dos Vedas.
2. Os galhos desta
árvore se estendem para baixo e para cima, nutridos pelos três modos da
natureza material (gunas). Os brotos são os objetos dos sentidos. Esta árvore
também tem raízes que descem, e estas estão atadas às ações fruitivas da
sociedade humana.
3-4. Não se pode
perceber a verdadeira forma desta árvore neste mundo. Ninguém pode compreender
onde ela acaba, onde começa, ou onde ela se alicerça. Mas com determinação
deve-se derrubar com a arma do desapego esta árvore fortemente arraigada. Em
seguida, deve-se procurar aquele lugar do qual ninguém volta após ter chegado
lá e render-se a Brahman de quem tudo começou e de quem tudo emana desde
tempos imemoriais” Bhagavad Gita (capítulo XV, versos 1, 2, 3, 4)
Esta
identificação da figueira (peepal) com o mundo
transitório, material, de nascimentos e mortes, não é definitiva. Inconformada
com a linearidade cartesiana dos dogmas, a cultura hinduísta se mimetiza na
diversidade da natureza, e resgata o mito do peepal em uma parábola onde esta árvore abriga
a própria Trimurti (Trindade
divina hinduísta), sendo as raízes Brahma, o tronco Vishnu e as folhas
Shiva.
Em uma
tradição onde o mundo orgânico está fortemente atrelado ao mundo sutil e troncos/estames/flores/frutos/raízes/cascas/folhas,
podem sanar e harmonizar o corpo, este mesmo efeito se
projeta também sobre um plano metafísico. E assim, mesmo com o
alerta de várias escolas sobre os riscos de seus discípulos caírem dos
galhos escorregadios deste percurso botânico, a árvore do yoga
mantem uma boa parte de suas raízes cravadas no reino vegetal.
Ruy Alfredo de Bastos Freire Filho
Diretor do Centro de Estudos de Yoga Narayana, em São Paulo/Brasil
(Árvore como Culto, Ruy Freire Filho)
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